meu pai
escrevo pedras penso homens
a palavra é apenas a palavra
o sentimento
onde recolho a lembrança de meu pai
no seu andar cadenciado e calmo
na calma de quem caminha
e espera companhia
sigo-o nessa estrada que segue
e cegos inda ouvimos
as imagens refletindo suas pupilas
a nos falar da natureza do rio Po ou do Amazonas
montanhas cantam trilhas
lá diante onde nasce o sol
e desce a água que deslumbra
a vida que sua luz inda ilumina
um pai de modos simples que ensinava
ouvindo sua voz naquilo que contava
aprendia enquanto discorria
conhecia a vida porque era homem
amava a verdade o equilíbrio sutil na natureza
a gente e sua vida
o amor é uma companhia[1]
dizia com suavidade tranquila
debruçando-se como a entender
outras vozes que o inspiravam
a história recordando o sonho
fora menino
onde gente em outra língua
ressoava outras vidas
neste poema da memória
sopra a brisa
sobre a pedra só idêntica a si mesmo
cada instante é outro instante
as palavras soam
não brame o vento no oceano
quando o céu azul de nuvens brancas
flutua presenças pressentidas
o menino ainda corre sob castanheiras
habita em mim
eterno é seu teatro que
por onde passo enceno
e não vivi
esqueço a realidade
não a limito ao mistério
de sentir a suave inclinação da liberdade
do menino sobre a relva entre pedras
descabelado ao vento
despencando o campo onde
ouço o eco
como um grito no horizonte
eco
de alegrias no futuro
corro
entre videiras e heras amarelas
para sentar sem hálito o coração acelerado
na passagem do mito que me acena
sigo o perfume sutil em meio ao verde
no poente quando o sol aquece pedras
para vibrar na alma
o coração
um doce-amaro
toco-me para sentir que sou
onde estou feliz na vida continuada
sendo eu a trilhar o seu caminho
em sendas da memória.
torno à velha praça descubro dois caminhos
um que sobe a encosta e chega ao alto
onde a vista abriu-se em horizonte
outro modesto esgueira-se à sombra
e leva ao velho Duomo a agasalhar os que ficaram
nas sombras do vilarejo pobre
onde ouço o eco do menino
…“Cosi tra questa Immensitá s‘ annega il pensier mio;
e il naufragar m’ è dolce in questo mare.”[2]
Roma, outubro de 2004.
[1] Fernando Pessoa, “O Pastor Amoroso”
[2] “Assim, nesta imensidão afoga-se meu pensamento;/ e naufragar me é doce neste mar.” Leopardi, in “L’Infinito”.
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