domingo, 22 de junho de 2008

PRESENÇA



meu pai


escrevo pedras penso homens
a palavra é apenas a palavra
o sentimento
onde recolho a lembrança de meu pai
no seu andar cadenciado e calmo
na calma de quem caminha
e espera companhia

sigo-o nessa estrada que segue
e cegos inda ouvimos
as imagens refletindo suas pupilas
a nos falar da natureza do rio Po ou do Amazonas

montanhas cantam trilhas
lá diante onde nasce o sol
e desce a água que deslumbra
a vida que sua luz inda ilumina

um pai de modos simples que ensinava
ouvindo sua voz naquilo que contava
aprendia enquanto discorria

conhecia a vida porque era homem
amava a verdade o equilíbrio sutil na natureza
a gente e sua vida

o amor é uma companhia
[1]
dizia com suavidade tranquila
debruçando-se como a entender
outras vozes que o inspiravam
a história recordando o sonho

fora menino
onde gente em outra língua
ressoava outras vidas

neste poema da memória
sopra a brisa
sobre a pedra só idêntica a si mesmo

cada instante é outro instante
as palavras soam
não brame o vento no oceano
quando o céu azul de nuvens brancas
flutua presenças pressentidas

o menino ainda corre sob castanheiras
habita em mim
eterno é seu teatro que
por onde passo enceno
e não vivi

esqueço a realidade
não a limito ao mistério
de sentir a suave inclinação da liberdade
do menino sobre a relva entre pedras

descabelado ao vento
despencando o campo onde
ouço o eco
como um grito no horizonte
eco
de alegrias no futuro

corro
entre videiras e heras amarelas
para sentar sem hálito o coração acelerado
na passagem do mito que me acena

sigo o perfume sutil em meio ao verde
no poente quando o sol aquece pedras
para vibrar na alma
o coração
um doce-amaro

toco-me para sentir que sou
onde estou feliz na vida continuada
sendo eu a trilhar o seu caminho
em sendas da memória.

torno à velha praça descubro dois caminhos
um que sobe a encosta e chega ao alto
onde a vista abriu-se em horizonte
outro modesto esgueira-se à sombra
e leva ao velho Duomo a agasalhar os que ficaram
nas sombras do vilarejo pobre
onde ouço o eco do menino

…“Cosi tra questa Immensitá s‘ annega il pensier mio;
e il naufragar m’ è dolce in questo mare.”
[2]


Roma, outubro de 2004.


[1] Fernando Pessoa, “O Pastor Amoroso”
[2] “Assim, nesta imensidão afoga-se meu pensamento;/ e naufragar me é doce neste mar.” Leopardi, in “L’Infinito”.

Nenhum comentário: